COMO SERIA ESTAR POR TRÁS DOS OLHOS DE UM
AUTISTA?
O autismo me prendeu dentro de um corpo que eu não posso
controlar" - conheça a história de Carly Fleischmann, uma adolescente que
aprendeu a controlar o autismo para se comunicar através de palavras escritas
em um computador após 11 anos de enclausuramento dentro de si mesma, e assista
também o vídeo interativo "Carly's Café", no qual você poderá
vivenciar alguns minutos da experiência de um autista por trás dos olhos de um.
“Quando dizem que sua
filha tem um atraso mental e que, no máximo atingirá o desenvolvimento de uma
criança de seis anos, é como se você levasse um chute no estômago", diz o
pai de Carly. Ela tem uma irmã gêmea que se desenvolvia naturalmente, e aos
dois anos, ficou claro que havia algo de errado. Ela estava imersa no oceano de
dados sensoriais bombardeando seu cérebro constantemente. Apesar dos esforços
dos pais, pagando profissionais, realizando tratamentos, ela continuava
impossibilitada de se comunicar e de ter uma vida normal. O pai de Carly
explica que ela não era capaz de andar, de sentar, e todos doutores
recomendavam: "Você é o pai. Você deve fazer o que julgar necessário para
esta criança".
Eram cerca de 3 ou 4 terapeutas trabalhando 46
horas por semana. Os terapeutas acreditavam que Carly fosse mentalmente
retardada, portanto, sem esperanças de algum dia sair daquele estado. Amigos
recomendavam que os pais parassem o tratamento, pois os custos eram muito
altos. O pai de Carly, no entanto, acreditava que sua criança estava ali,
perdida atrás daqueles olhos:
"Eu não poderia desistir da minha filha".
"Eu não poderia desistir da minha filha".
Subitamente aos 11 anos algo marcante
aconteceu. Ela caminhou até o computador, colocou as mãos sobre o teclado e
digitou lentamente as letras: H U R T - e um pouco depois digitou - H E L P.
Hurt, do inglês "Dor", e Help significa "Socorro". Carly
nunca havia escrito nada na vida, nem muito menos foi ensinada, no entanto, foi
capaz de silenciosamente assimilar conhecimento ao longo dos anos para se
comunicar, usando a palavra pela primeira vez, em um momento de necessidade
extrema. Em seguida, Carly correu do computador e vomitou no chão. Apesar do
susto, ela estava bem. "Inicialmente nós não acreditamos. Conhecendo Carly
por 10 anos, é claro que eu estaria cético", disse o pai.
Os terapeutas estavam
ansiosos para ver provas e os pais incentivavam Carly ao máximo para que ela se
comunicasse novamente. O comportamento histérico de Carly permanecia exatamente
como antes e ela se recusava a digitar. Para força-la a digitar, impuseram a
necessidade. Se ela quisesse algo, teria que digitar o pedido. Se ela quisesse
ir a algum lugar, pegar algo, ou que dissessem algo, ela teria que
digitar.
Vários meses se passaram e ela percebeu que ao se comunicar, ela tinha
poder sobre o ambiente. E as primeiras coisas que Carly disse aos terapeutas
foi "Eu tenho autismo, mas isso não é quem eu sou. Gaste um tempo para
me conhecer antes de me julgar.
A partir dai, como
dizem os pais, Carly "encontrou sua voz" e abriu as portas de sua
mente para o mundo. Ela começou a revelar alguns mistérios por trás do seu
comportamento de balançar os braços violentamente, e de bater a cabeça nas
coisas, ou de querer arrancar as roupas: "Se eu não fizer isso, parece que
meu corpo vai explodir. Se eu pudesse parar eu pararia, mas não tem como
desligar. Eu sei o que é certo e errado, mas é como se eu estivesse travando
uma luta contra o meu cérebro".
"Eu gostaria de ir a
escola, como as outras crianças. Mas sem que me achassem estranha quando eu
começasse a bater na mesa, ou gritar. Eu gostaria de algo que apagasse o
fogo". Carly explica ainda que a sensação em seus braços é como se estivessem
formigando, ou pegando fogo. Respondendo a uma das perguntas que fizeram a ela,
sobre porquê às vezes ela tapa os ouvidos e tapa os olhos, ela explica que isso
serve para ela bloquear a entrada de informações em seu cérebro. É como se ela
não tivesse controle e tivesse que bloquear o exterior para não ficar
sobrecarregada. Ela explica ainda que é muito difícil olhar para o rosto de uma
pessoa. É como se tirasse milhares de fotos simultaneamente com os olhos, e é
muita informação para processar. O cérebro de Carly não possui a capacidade de
catalizar a quantidade imensa de informações para os sentidos, e
consequentemente, ela não pode lidar com a quantidade excessiva de informação
absorvida.
Ela conversa com as pessoas e
responde dúvidas sobre o autismo. Com ajuda do pai ela escreveu um livro
chamado Carly's Voice (A voz de Carly). Entre os mais variados comentários que
ela recebe sobre o livro, um crítico disse: "A história de Carly é um
triunfo. O autismo falou e um novo dia nasceu".
Veja algumas perguntas respondidas por
Carly
que ajudam a elucidar algumas questões do autismo:
Questão 1:
Carly, você pode me dizer
porque meu filho cospe todo o tempo? Ele tem todos os outros tipos de
comportamento também: Bater a cabeça, rolar, balançar os braços, mas o cuspe é
asqueroso e realmente faz com que as pessoas queiram ficar longe dele.
Alguma ideia?
Carly: Eu nunca cuspi, quando era criança. No entanto, eu babava, e
sentia como se cuspisse. Hoje eu percebo que eu nunca soube como engolir a
saliva. Eu nunca usei minha boca para falar, e por isso, nunca usei os músculos
da boca. Quando você tem saliva presa na sua boca, existem poucas maneiras de
se livrar do desconforto. Tente dar a ele alguns doces por duas semanas. Isso
vai fortalecer os músculos e ensina-lo a engolir a saliva.
Questão 2:
Meu garoto de
quatro anos grita no carro toda vez que o carro para. Ele fica bem, desde que o
carro mantenha-se em movimento. Mas uma vez que parou, ele começa a gritar. É
uma mania incontrolável.
Carly: Eu adoro longos passeios de carro. O carro em movimento, e o
visual passando rapidamente permite que você bloqueie outros impulsos
sensoriais e foque em apenas um. Meu conselho é que você coloque um DVD no
carro com cenário em movimento.
Questão 3:
Você alguma vez já
gritou sem razão nenhuma? Mesmo com o semblante feliz, e tudo calmo e relaxado,
mas você apenas começa a gritar? Minha filha às vezes faz isso e eu estou
tentando entender o porquê.
Carly: Ela está filtrando o áudio e
quebrando os sons, ruídos e conversações através do dia. Além de gritar, ela
poderá chorar, rir alto e até demonstrar raiva. É a nossa reação por finalmente
entendermos algo que foi dito há alguns minutos, alguns dias ou alguns meses.
Está tudo ok com ela.
Questão 4:
Como eu faço com que um
adolescente pare com movimentos repetitivos na classe? Ele diz que os
professores são chatos e que é muito mais divertido na cabeça dele. Eu sei que
é, mas ele está perdendo todas as instruções e leituras. Eu estou sempre
redirecionando ele, mas ele está perdendo tanto. Me ajude.
Carly: Ok. Preciso limpar uma má interpretação sobre o autismo. Se
uma criança está fazendo movimentos repetitivos, não quer dizer que ele ou ela
não esteja escutando. De fato, ela escuta melhor se ela estiver fazendo esses
movimentos. Eu estou estudando e ainda faço movimentos na classe. Eu tento ser
discreta, como se estivesse enrolando um pequeno pedaço de papel nos meus
dedos. Todos fazem movimentos repetitivos. Pense nos desenhos que você faz
quando está no telefone, ou enrolando a ponta dos cabelos, ou enroscando o
lápis entre os dedos. Isso é um "stim" (uma movimentação repetitiva).
Não há nada de errado com isso, mas às vezes é melhor tentar ser discreto.
*GUSTAVO SERRATE
Jornalista e cineasta independente de
Brasília. Interesses transitando pelo cinema, quadrinhos, fotografia, video
making, motion design e toda forma de cultura independente ou marginalizada.
30.12.2012
PONTO CEGO
incubador de pensamentos